“Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto.” (Jo 12.24).
Fins da década de vinte, 1928, a colheita de café nas lavouras paulistas está no auge. Pouquíssimos agricultores sonham com o desastre econômico em gestação, prestes a eclodir no ano seguinte em plagas americanas, que afetaria drasticamente a lavoura cafeeira brasileira.
Nas grandes fazendas do oeste paulista, a massa de imigrantes japoneses, há duas décadas no Brasil, trabalha duramente, quatorze horas por dia, nas plantações de café, a fim de cumprir prazos e cotas.
Os contratos mais humanos que alguns nikkeis têm a sorte de assinar com os proprietários das terras, permite o usufruto dos lucros da primeira safra de café, após limparem e semearem um terreno virgem indicado pelo dono – mas exige a volta da posse ao proprietário após sete anos, para que este tome posse da segunda colheita, já madura, e da terra com suas benfeitorias e lavoura estabelecida. Um adendo, no entanto, permite o comércio de qualquer coisa que plantem às suas próprias expensas entre a semeadura e a colheita do café, nas entressafras – geralmente batata, feijão, milho e arroz –, o que traz algum alívio financeiro e, em alguns casos, após três ou quatro anos, até mesmo uma discreta poupança, usada para comprar pequenos lotes.
A maioria dos japoneses, no entanto, é vítima de contratos iníquos, onde o agricultor – que pouco entendia da língua portuguesa – recebia um salário baixíssimo, do qual era descontada sua passagem de vinda ao Brasil, e obrigado a comprar mantimentos dos próprios contratantes a custos altíssimos. Como consequência, um ciclo perverso de endividamento mantinha o agricultor e sua família em um regime de semiescravidão. Não poucas famílias viriam a romper seus contratos após um ano de trabalho, saindo na calada da noite, sem rumo definido, à procura de outras paragens com melhores condições de trabalho. Muitas desistem da vida do campo e aportam na cidade de São Paulo de forma miserável e deprimente, e se dirigem à região central da Sé, em busca de parentes e conhecidos que lhes deem abrigo.
Eram tempos difíceis para a crescente colônia japonesa que aumentava a cada ano, ininterruptamente, desde 1908.
***
Final de manhã de domingo, em uma pequena fazenda nos arredores da recém-organizada cidade de Presidente Prudente – conhecida por muitos como Vila Goulart. Dez anos antes, um gigantesco latifúndio que fora recortado em lotes de dez e vinte alqueires, e vendidos com sucesso àqueles que queriam tentar a sorte na lavoura cafeeira. A região é rural, e mesmo a cidade não pode ser chamada de urbana no sentido contemporâneo do termo. Não há estradas pavimentadas, apenas picadas abertas entre roças e terrenos desmatados. Nos melhores trechos, há caminhos de terra batida, devido ao lento tráfego das carroças e cavalos. Placas indicativas inexistem.
Cansado, ele olhou com esperança a pequena coluna de fumaça que saía dos fundos da casa que se avizinhava, em um desses rincões quase esquecidos por Deus. O cheiro delicioso de comida recém-preparada, tornado inebriante devido à sua fome – nada comera nos últimos dois dias, além de pequenas frutas encontradas no mato ao largo da estrada –, o fez deixar de lado suas fortes inibições e decidir-se a pedir abrigo e alimento. Não era de seu feitio, mas a fome e o cansaço o impeliam. Confiou uma rápida oração ao Senhor Deus e bateu palmas à frente da casa.
Uma senhora de meia idade, atendendo ao chamado, postou-se calmamente e observou a figura esguia à sua porta. Não era o tipo de pessoa – pensou – que estava acostumada a receber em sua propriedade. O inusitado da visita, entretanto, despertou-lhe a atenção. À sua frente estava um jovem senhor oriental de cabelos partidos ao lado, no rosto um discreto bigode, incomum nos incansáveis lavradores japoneses, aparentando menos de quarenta anos, metido em um paletó surrado, com uma bolsa preta a tiracolo. Algo em seu porte denunciava certa fraqueza física, mas seus olhos eram tranquilos e transmitiam confiança.
- Pois não? O que desejas? – Inquiriu com desarmada curiosidade, a senhora.
Obteve como resposta algo que soava como japonês, mas cuja intenção era ser em português.
- Desculpe senhor, não entendi o que quis dizer. Poderias repetir?
Nova tentativa e novo fracasso. As palavras atravancadas não faziam muito sentido. Vendo que não conseguiria expressar sua petição em português claro, gesticulou apontando para barriga, fazendo menção do cheiro. Completou com um gesto humilde, juntando as palmas das mãos e inclinando levemente a cabeça.
- Ah! Entendi. O senhor está com fome. Bem vi que sua aparência era de fraqueza. Entre, entre, tem bastante comida. Meu esposo já está chegando e logo lhe fará companhia.
E com hospitalidade e gentileza a senhora o acomodou em uma comprida e rústica mesa em um puxado aos fundos da casa, onde algumas pessoas da família já estavam sentadas. Outros mais se juntariam para o almoço dominical.
A refeição foi abundante e nutritiva. Um panelão de carne de porco guisada com legumes acompanhava duas grandes terrinas de argila, uma fumegante de arroz e outra de feijão com abóbora e charque. Completava o cardápio, uma panela de angu com quiabo e uma travessa de taioba e couve refogadas. Havia ainda aipim e cará cozidos à disposição e um grande cacho de banana pendurado no que fazia às vezes de varanda do recinto. Foi recebido com bondade por todos, alguns claramente curiosos em entender o que tentava falar.
Enquanto esperava todos se servirem, dava graças ao Senhor pela Sua bondade, manifesta por meio daquela família, especialmente em um dia tão especial quanto o domingo. Mas seus pensamentos eram intranquilos, pois a família que viera procurar, e na qual tinha esperanças de se hospedar dois dias antes, não fora encontrada e ninguém sabia para onde havia partido. Alguém sugerira que haviam partido rumo a desconhecida Fazenda Bastos, local distante oitenta quilômetros, rumo norte, pouco povoado e de acesso difícil. Mais uma família que perdia nos rincões do oeste paulista. Com tristeza refletiu que isso se constituía em uma oportunidade a menos de pregar o evangelho para seus conterrâneos.
Timidamente buscou reconhecer os alimentos à mesa, sem trair seu desconhecimento da maioria das iguarias. A senhora percebendo seu acanhamento, o serviu com generosidade. Ao provar o arroz soltinho, diferente em sabor e textura do gohan familiar – o arroz japonês –, suas lembranças voltaram-se para a esposa e filhos, morando na capital paulista. A vida não estava sendo fácil para eles também, pois dependiam da bondade de outros, quando de suas frequentes viagens ao interior, e do pouco dinheiro que entrava dos chapeis que sua esposa fazia para complementar a pequena renda familiar. Apesar de missionário, nenhuma ajuda recebia da pequena igreja do Japão, mas isso não o incomodava, pois sabia dos parcos recursos da mesma. Sentiu uma grande saudade da esposa e filhos – há quase um mês não os via.
Comeu com vontade o arroz, sem desperdiçar nenhum grão. Ao provar o feijão estranhou a presença de abóbora e da carne levemente salgada, mas o sabor era excelente e de alguma forma combinava à perfeição com o arroz. E mais uma vez seus pensamentos alçaram voo, desta vez para o breve período em que morara em Registro/SP, para os campos de plantação do cereal. Percorrera muitos quilômetros, a pé, para encontrar famílias nikkeis em meio ao relevo serrano da região. Não raro, quando encontrava o lugar, os adultos estavam na lavoura, e somente as crianças menores permaneciam em casa, sem qualquer supervisão familiar, pelo que aproveitava a oportunidade para servir de alguma ajuda à família, fosse limpando as crianças, cortando seus cabelos, fosse ensinando japonês ou fazendo algum trabalho menor de marcenaria, e ao fim do dia e finais de semana trazia uma palavra das Escrituras.
Após a refeição, agradeceu profusamente sua anfitriã e tomou rumo da estrada, mas caminhava devagar, devido a uma leve dor no abdômen, que lhe incomodava há meses, e que era mais aguda após as refeições. Resolvera procurar a fazenda Bastos, disposto encontrar seus conterrâneos. Não tinha como saber que naquela localidade que saíra a procurar, dois anos depois, após evangelizar a várias famílias japonesas e constituir uma pequena congregação, viria a realizar seu último e derradeiro culto missionário. Mesmo às portas da morte manteve seu compromisso com seu Senhor. Sua última mensagem, no culto público foi proclamada com ele deitado, pois não tinha forças para ficar em pé.
Faleceu, da mesma forma que viveu, de forma humilde e discreta. Seu enterro foi simples, e aqueles que estavam presentes não cogitaram do grande legado que deixara em sua curta estada no Brasil. Seu nome não foi conhecido daquela geração, e não foi cantado em verso e prosa ou alardeado com pompa. Antes, em silêncio doloroso e contrito, os poucos presentes apenas murmuravam seu nome ao redor do féretro. Da semente que plantou com sua própria vida, cresceu uma pequena árvore, cujos frutos foram as muitas famílias de japoneses que se renderam ao Senhor Jesus Cristo nas décadas seguintes. Daquelas famílias nasceu uma denominação – Igreja Evangélica Holiness do Brasil - que permanece firme na fé, à semelhança daquele missionário, completando 100 anos em 2025. Como os planos do Senhor são sempre além do que imaginamos ou pensamos, nas décadas de oitenta e noventa do século XX, algumas famílias e missionários nipo-brasileiros fizeram o caminho inverso do missionário e voltaram ao Japão para pregar o evangelho a um povo carente da Graça de Cristo. Quem é capaz de mensurar o impacto que uma única vida, totalmente dedicada ao Senhor, fará na vida de tantas gerações?
***
Dezembro, 2014, semana de natal, tarde da noite. Vou orar com minhas duas filhas e pô-las para dormir. Animada, a mais nova pede uma história.
- Papai, faz tempo que o senhor não conta uma história. Conta uma, vai!
- Naomi, está tarde. Hora de dormir.
- Mas estamos de férias. Conta uma que o senhor nunca contou – retruca Mitca, com os olhos brilhando.
- Vejamos... uma que nunca contei...
E por um breve momento relembro de minha primeira família cristã, que me conduziu nos primeiros passos do cristianismo. Uma denominação pequena, de olhos puxados, sorrisos tímidos e grande união. Ali ouvi da mensagem da graça de Cristo, do sacrifício do Filho de Deus, e da necessidade de uma vida santa. Fiz amizades, sofri de amores, debati valores. E nessa saudade da minha família nipônica, suspiro e procuro no recôndito algo para contar e vem à memória uma história preciosa.
Conto para minhas filhas uma das histórias que ouvi na Holiness e nunca esqueci, posto que suas consequências, em uma grande sucessão de eventos ao longo de quase um século, criariam os meios e o momento propício para minha conversão e, de certa forma, permitiram que eu estivesse naquele momento com minhas filhas a falar do amor do Senhor.
Assim, conto a elas acerca de um missionário japonês que veio ao Brasil para falar de Cristo às primeiras levas de imigrantes japoneses que aportaram em São Paulo, no início do século passado. Um homem jovem e generoso, que não falava português, não conhecia a cultura brasileira, não tinha sustento e não possuía uma igreja local que o acolhesse. Percorreu a pé muitos e muitos quilômetros no interior paulista e paranaense para pregar às famílias das nascentes colônias japonesas. Das poucas histórias que lembro, conto que certa feita, após muito caminhar em seu trabalho de peregrino, com muita fome e grande cansado, bateu às portas de uma casa pedindo um pouco de comida e foi muito bem recebido e servido de uma deliciosa refeição, nunca esquecida. Comento às filhas que o Senhor Deus havia preparado uma mesa para seu filho cansado. Elas se interessam e querem saber mais detalhes acerca do episódio e da refeição – como foi, como era a comida da época, o que ele mais gostou, se a senhora era real ou se era um anjo mandado pelo Senhor, e assim por diante.
Transmito o que sei e preencho as lacunas com o que estudei da história da época, deixando claro que poderia ter sido assim. Também lhes conto que o ministério daquele missionário seria curto e que viria a falecer apenas cinco anos após sua chegada, não tendo a oportunidade de ver os frutos de seu árduo e penoso trabalho, que resultaria em uma denominação cristã e milhares de convertidos ao longo das décadas. Também lhes conto que se estou toda noite contando uma história bíblica é porque o Senhor abençoou a fidelidade daquele missionário, e que eu – e elas – erámos frutos daquelas andanças.
Ao término, minha filha mais velha está emocionada.
- Que história triste, Papai.
- Por que triste, Mitca? É uma bela história, pois nos fala de alguém que seguiu o exemplo de Cristo.
- É que ele morreu tão cedo. Morreu de quê?
- Creio que tinha uma doença no fígado. Na época era impossível saber com certeza. E suas viagens constantes, comendo mal e o que tinha (ou não tinha), bem como e o desgaste físico, devem ter agravado a doença.
- Muito triste. Nem viu a igreja formada – murmura baixinho e olhos marejados.
- Isso é tão importante assim, filha? – e com carinho me ouço dizendo – Ele obedeceu o chamado, mesmo com sacrifício da própria vida. No final é isso que importa.
Minha filha mais nova, Naomi, tenta esconder as lágrimas em meio aos lençóis. Com voz entrecortada e embargada pergunta:
- Qual era o nome dele, papai? O senhor não disse o nome dele.
Respondo baixinho, quase um murmúrio:
- Monobe! O nome dele era Takeo Monobe.
E com um beijo as despeço para dormir.
E com a história em mente me dirijo ao meu quarto para dormir e não pego rápido no sono. Em minha mente alternam duas imagens. Uma de um homem jovem, em uma terra estrangeira, a entregar sua vida pelo chamado de Cristo e, a outra, a de um grão de trigo caído no solo. Após um tempo ambas se fundem em um quadro maior, que nos foi dado pelo próprio Senhor Jesus Cristo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto. Me aquieto sabendo que aquele grão morreu, mas seus frutos permaneceram e continuar a brotar.
Quem é capaz de mensurar o impacto que uma única vida, totalmente dedicada ao Senhor, fará na vida de tantas gerações?
Kelson Mota Teixeira de Oliveira
Manaus AM
Prezado Dr Kelson:
Me emocionei! Que Deus continue abençoando você e sua família!
Abraços
Irene
Agradeço, uma linda história de Amor pelos não alcançados, que Previlegio ser Amigo do Kelson, saber que de um Homem ou rapaz que não cria muito em Deus, se tornou uma semente viva e eficaz na Obra de Deus na terra. Parabéns, que Deus continue abençoando a sua Família e a multiplicar o grão de trigo que ele lhe concedeu. Grande Abraço. Ivens